Habeas Corpus

Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo Local de Competência Genérica de Odemira
Exmo. Senhor Juiz de Instrução
Rui Pedro Fonseca Nogueira da Fonseca e Castro, juiz de Direito, portador do Cartão de Cidadão n.º …, titular do NIF …, com domicílio na …, vem requerer HABEAS CORPUS a favor de várias pessoas cuja identificação não foi possível obter, mas cujo número se situa entre vinte e trinta, nos termos e com os fundamentos que se seguem:
Questão prévia:
A omissão da informação referente ao número de pessoas ilegalmente detidas e respectivas identidades deve-se, conforme infra explanado, exclusivamente à circunstância da GNR, que guarda o local do encarceramento, não ter disponibilizado tal informação, e tampouco permitido a visita às mesmas, mantendo tais dados em segredo, o que, não obstante, não pode ser impedimento para a aceitação do presente requerimento.
Factos:
1. Durante a madrugada de hoje, mais precisamente por volta das 4h00, dirigiu-se um contingente da GNR, que incluía diversas viaturas, o corpo de intervenção e elementos cinotécnicos, à residência de diversas pessoas, na sua totalidade trabalhadores agrícolas estrangeiros e desconhecedores da língua portuguesa.
2. Foram tais pessoas, incluindo mulheres e crianças, num total que pode variar entre vinte e trinta, acordadas a meio da noite, sendo-lhes ordenado pelos militares da GNR que abandonassem as suas residências e entrassem num autocarro.
3. Os militares da GNR dirigiram-se então de seguida para as instalações do empreendimento “Zmar Eco Experience”, sito na Herdade A-De-Mateus, E.N. 393-1, 7630-011 Longueira, Almograve, Odemira, para onde igualmente transportaram aquelas pessoas.
4. Ali chegados, os militares arrombaram os portões do empreendimento e acantonaram os detidos num determinado local do mesmo, enquanto decidiam onde os colocar.
5. As pessoas em causa acabaram por ser distribuídas por diversas unidades habitacionais existentes no empreendimento, onde ainda se encontram.
6. O local encontra-se guardado por um forte contingente de militares da GNR, quer à entrada do empreendimento, quer junto das unidades habitacionais onde aquelas pessoas foram colocadas.
7. O Requerente deslocou-se hoje ao local, com a finalidade de saber exactamente quantas pessoas ali foram colocadas nos termos supra descritos, assim como os respectivos nomes e identidades.
8. A Alferes … informou o Requerente não possuir informações quanto ao número e tampouco quanto à identidade de tais pessoas, informando-o igualmente não ter autorização para permitir a sua entrada no empreendimento, de forma a que pudesse falar com as mesmas.
Direito:
Resulta dos factos supra descritos que se encontram diversas pessoas privadas da sua liberdade, ocupando propriedade privada alheia, após terem sido retiradas das suas habitações, a meio da noite, mediante acção policial, sem que tenham cometido qualquer ilícito criminal.
O direito à liberdade é um dos direitos fundamentais inalienáveis dos cidadãos, encontrando-se, desde logo, consagrado no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição.
A nível internacional, encontramos a tutela do direito à liberdade no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 9.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Tratando-se de direito inalienável, não se reveste, porém, da natureza de absoluto, cedendo, portanto, face a determinados interesses da mesma ordem de grandeza constitucional, sendo forçoso, a este propósito, fazer menção à regra prevista no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição, nos termos do qual “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”.
As excepções a esta regra encontram-se taxativamente elencadas nas alíneas a) a h) do n.º 3 do mesmo artigo, dizendo as mesmas respeito ao processo criminal, ao processo disciplinar militar, à protecção de menores, a medidas de polícia e a questões de saúde mental, prevendo-se sempre uma intervenção jurisdicional.
Pelo contrário, e voltando ao caso que nos ocupa, estamos aqui perante uma autêntica privação da liberdade pessoal e física de diversas pessoas, incluindo mulheres e crianças, executada de forma coerciva por elementos policiais, à margem de qualquer respaldo constitucional e de qualquer intervenção jurisdicional.
Há que levar em consideração que o catálogo de excepções constante do artigo 27.º, n.º 3, da Constituição, não compreende as matérias referentes à protecção civil.
Mostra-se, pois, evidente estarmos perante uma verdadeira privação da liberdade de diversas pessoas, materialmente consistente numa detenção, encontrando-se as mesmas isoladas em local onde foram colocadas após terem sido retiradas das suas habitações durante a madrugada.
Recorde-se que, mesmo para uma busca domiciliária, a intrusão na habitação das pessoas apenas excepcionalmente por ocorrer entre as 21h e as 7h (cfr. artigo 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
As detenções em causa, incluindo de mulheres e crianças, são escandalosamente ilegais, devendo fazer incorrer em responsabilidade criminal quem as mesmas determinou e quem as mesmas executou.
Dispõe o artigo 31.º, n.º 1, da Constituição, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.”.
Regulando sobre o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, dispõe, por sua vez, o artigo 220.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, da seguinte forma:
“Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos:
a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial;
b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos;
c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
d) Ser a detenção motivada ou ordenada por facto pelo qual a lei não permite.”
Subsumindo-se o presente caso nas alíneas b), c) e d) acima transcritas, deve ser concedido o habeas corpus, sendo as pessoas ilegalmente detidas imediatamente devolvidas à liberdade.
Não pode ser impedimento para a aceitação do presente requerimento a circunstância de não estarem identificadas as pessoas privadas da liberdade, uma vez que a omissão de tal informação resulta exclusivamente do segredo imposto por quem se encontra a privá-las da liberdade, tal como supra descrito.
Termos em que requer a V. Exa. digne ordenar a imediata apresentação judicial das pessoas que foram retiradas das suas habitações e colocadas no empreendimento “Zmar”, ouvindo-as e concedendo-lhes, a final, o habeas corpus, com a consequente devolução das mesmas à liberdade.
Pede Deferimento,
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